quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Esquizofrenia e genialidade

Dando uma pausa nas postagens sobre o documentário The Ascent of Money – embora seja um filme excelente, suas quatro horas de duração requerem um intervalo vez ou outra! – assisti a um filme de ficção cuja qualidade se impõe e cujo tema nos leva às ligações das ciências econômicas com a matemática: Uma mente brilhante (2001).
Esta cinebiografia do matemático John Nash, vencedor do Prêmio de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel (conhecido popularmente como o Prêmio Nobel de Economia) em 1994, me surpreendeu por dois motivos. Do ponto de vista de um estudante de Economia, a grande inovação que o levou a Suécia; de um ponto de vista humanista, a vida e a trajetória intelectual extraordinária de um homem que navegou entre a esquizofrenia e a genialidade.
Comecemos então pelo ponto de vista dos estudos em Economia. Em uma cena bastante surreal, o jovem tímido, antissocial e obcecado por matemática John Nash aparece dentro de um bar, sentado a uma mesa sobre a qual vários papéis e livros se encontram. Alguns colegas se aproximam e chamam-lhe a atenção para uma moça que acabara de entrar no recinto. Passam, então, a discutir a melhor estratégia para cortejá-la. Logo um dos rapazes relembra Adam Smith para defender a competição aberta entre eles pela atenção da senhorita: “A ambição de cada um leva ao melhor resultado para todos”. John Nash se colocar a refletir. Logo, dispara: “Adam Smith precisa de revisão”. Diante da perplexidade dos outros, prossegue: “Se todos competirmos pela loura, nos bloquearemos e nenhum de nós irá ganha-la”. Seguindo o princípio de Adam Smith: “Partiremos para suas amigas que também nos abandonarão, pois ninguém gosta de ser a segunda opção”. E se não nos guiarmos pelo princípio do auto-interesse? Poderíamos obter resultados melhores? Adam Smith nega, mas o jovem John Nash tem outra intuição: “Se combinarmos para abordar somente as amigas da loura, ninguém fica no caminho de outro nem afastamos as amigas. Ninguém leva a loura, mas todos nós levamos algo pra casa”. Em uma sentença: os resultados de estratégias negociadas são melhores que a adoção individual e descoordenada do princípio do auto-interesse. O jovem audaciosamente conclui, antes de sair do bar: “Adam Smith estava errado”.
John Nash, esquizofrênico e genial, acabava de estabelecer um novo princípio para as ciências econômicas. Havia, desde Adam Smith, um conforto e uma dúvida na seara econômica, simultaneamente. O edifício intelectual de Adam Smith parecia inatacável; ao mesmo tempo, a aplicação de seus princípios para a compreensão do funcionamento de certos mercados parecia um pouco problemática. A um só tempo, firme aceitação intelectual e dificuldade de aplicá-la a realidade. John Nash intuiu o que estava faltando. Os princípios explicativos de Adam Smith supõe uma série de condições para sua validade: em uma palavra, mercados concorrenciais. O desenvolvimento do capitalismo posterior a Adam Smith, contudo, desenvolveu mercados não-concorrenciais, oligopolizados ou mesmo monopolistas. Para esses mercados imperfeitos, os seguidores do escocês diziam que tais mercados apresentavam “distorções”. Como não conseguiam explicá-los com Adam Smith, curiosamente, afirmavam que eram os mercados problemáticos... Talvez não lhes ocorresse que o problema estava no pai da economia, que era insuficiente para explicá-los.
O gênio matemático esquizofrênico, refletindo sobre a melhor estratégia para não voltar sozinho para casa no final de uma noite boêmia, intuiu que nem sempre os melhores resultados para um grupo serão alcançados quando cada membro do grupo perseguir seus próprios interesses individuais. Intuiu, portanto, que o princípio do auto-interesse é válido, como Smith demonstrou, mas apenas para uma estrutura de mercado específica. A partir dessa intuição, logo ficaria claro para o economistas que em mercados não-concorrenciais os melhores resultados era m obtidos com diferentes estratégias.
Essa intuição de John Nash refundou e reorientou os estudos econômicos sobre mercados não-concorrenciais. Talvez seja uma comparação extravagante, mas poderíamos dizer que teve frutos similares ao trabalho do escocês. O estabelecimento do princípio do auto-interesse levou ao desenvolvimento de um corpo teórico e científico sem precedentes nas ciências econômicas; da mesma forma, a revelação de que, em determinadas circunstâncias, o princípio do auto-interesse não leva aos melhores resultados possíveis inaugurou um novo campo de estudos econômicos.
De um ponto de vista humanista, a cinebiografia Uma mente brilhante encanta e arrebata seus expectadores ao narrar a vida de um gênio matemático que, simultaneamente, era esquizofrênico. A esquizofrenia não veio só mais tarde, como um fim melancólico de um engenhoso filósofo. Suas ilusões e delírios já estavam com ele desde aquela fatídica noite no bar. Com o tempo, tomaram conta de sua vida. A essa altura, o matemático já reconhecido e renomado teve que enfrentar conscientemente sua psicose. Como a vida sob medicação parecia intolerável, decidiu enfrentar suas miragens sozinho, conviver com elas. Já na velhice, quando sua capacidade intelectual parecia há muito esgotada, assombrou novamente: em uma cena simples e marcante, o professor John Nash, ao ser abordado por um estranho ao fim de uma aula, segura uma das suas alunas pelo braço e pergunta-lhe se ela vê aquele senhor que o abordara. Com a confirmação da moça, convence-se que aquele homem é real. John Nash aprendeu a conviver com seus devaneios, voltou a lecionar e, para coroar essa vida e inteligência extraordinárias, foi laureado em 1994. Gênio e louco, simultaneamente.

Há poucos dias atrás, foi anunciado o vencedor do Prêmio Nobel de Economia de 2014. Nele, podemos identificar o DNA intelectual de John Nash. O economista francês Jean Tirole foi laureado pelos seus estudos sobre regulação da concorrência e poder de mercado de grandes empresas. Adam Smith teria se ressabiado com a ideia de “regulação da concorrência” uma vez que, para ele, a concorrência era um resultado da não-regulação, da omissão do Estado. Mas o modelo do escocês é insuficiente para explicar a concorrência em mercados nos quais grandes empresas adquirirem poder para manipular preços e quantidades, em seu benefício. A livre concorrência de Smith pressupõe que ofertantes e demandantes estejam sob as forças do mercado, e não no seu comando. Para esses mercados, John Nash é a continuação necessária de Adam Smith. Para esses mercados, o Estado deve regular a concorrência para impedir que o poder de mercado de grandes empresas produza resultados piores, obtidos quando o princípio do auto-interesse é salvaguardado. Num mercado dominado por grandes empresas, de acordo com o princípio do auto-interesse, tais empresas controlariam preços e quantidades para seu melhor resultado, gerando uma mais que proporcional perda para os demandantes. Tudo somado, os resultados obtidos pelo princípio do auto-interesse são inferiores aos resultados obtidos pela regulação da concorrência. A loura voltou pra casa sozinha.

https://www.youtube.com/watch?v=BsO5N16uQGc

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