Dando uma pausa nas postagens sobre o documentário The Ascent of Money – embora seja um
filme excelente, suas quatro horas de duração requerem um intervalo vez ou
outra! – assisti a um filme de ficção cuja qualidade se impõe e cujo tema nos
leva às ligações das ciências econômicas com a matemática: Uma mente brilhante (2001).
Esta cinebiografia do matemático John Nash, vencedor do
Prêmio de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel (conhecido
popularmente como o Prêmio Nobel de Economia) em 1994, me surpreendeu por dois
motivos. Do ponto de vista de um estudante de Economia, a grande inovação que o
levou a Suécia; de um ponto de vista humanista, a vida e a trajetória
intelectual extraordinária de um homem que navegou entre a esquizofrenia e a
genialidade.
Comecemos então pelo ponto de vista dos estudos em Economia.
Em uma cena bastante surreal, o jovem tímido, antissocial e obcecado por
matemática John Nash aparece dentro de um bar, sentado a uma mesa sobre a qual
vários papéis e livros se encontram. Alguns colegas se aproximam e chamam-lhe a
atenção para uma moça que acabara de entrar no recinto. Passam, então, a discutir
a melhor estratégia para cortejá-la. Logo um dos rapazes relembra Adam Smith
para defender a competição aberta entre eles pela atenção da senhorita: “A
ambição de cada um leva ao melhor resultado para todos”. John Nash se colocar a
refletir. Logo, dispara: “Adam Smith precisa de revisão”. Diante da
perplexidade dos outros, prossegue: “Se todos competirmos pela loura, nos
bloquearemos e nenhum de nós irá ganha-la”. Seguindo o princípio de Adam Smith:
“Partiremos para suas amigas que também nos abandonarão, pois ninguém gosta de
ser a segunda opção”. E se não nos guiarmos pelo princípio do auto-interesse?
Poderíamos obter resultados melhores? Adam Smith nega, mas o jovem John
Nash tem outra intuição: “Se combinarmos para abordar somente as amigas da
loura, ninguém fica no caminho de outro nem afastamos as amigas. Ninguém leva a
loura, mas todos nós levamos algo pra casa”. Em uma sentença: os resultados de
estratégias negociadas são melhores que a adoção individual e descoordenada do
princípio do auto-interesse. O jovem audaciosamente conclui, antes de sair do
bar: “Adam Smith estava errado”.
John Nash, esquizofrênico e genial, acabava de estabelecer
um novo princípio para as ciências econômicas. Havia, desde Adam Smith, um
conforto e uma dúvida na seara econômica, simultaneamente. O edifício
intelectual de Adam Smith parecia inatacável; ao mesmo tempo, a aplicação de
seus princípios para a compreensão do funcionamento de certos mercados parecia
um pouco problemática. A um só tempo, firme aceitação intelectual e dificuldade
de aplicá-la a realidade. John Nash intuiu o que estava faltando. Os princípios
explicativos de Adam Smith supõe uma série de condições para sua validade: em
uma palavra, mercados concorrenciais. O desenvolvimento do capitalismo posterior
a Adam Smith, contudo, desenvolveu mercados não-concorrenciais, oligopolizados
ou mesmo monopolistas. Para esses mercados imperfeitos, os seguidores do
escocês diziam que tais mercados apresentavam “distorções”. Como não conseguiam
explicá-los com Adam Smith, curiosamente, afirmavam que eram os mercados
problemáticos... Talvez não lhes ocorresse que o problema estava no pai da
economia, que era insuficiente para explicá-los.
O gênio matemático esquizofrênico, refletindo sobre a melhor
estratégia para não voltar sozinho para casa no final de uma noite boêmia,
intuiu que nem sempre os melhores resultados para um grupo serão alcançados
quando cada membro do grupo perseguir seus próprios interesses individuais.
Intuiu, portanto, que o princípio do auto-interesse é válido, como Smith
demonstrou, mas apenas para uma estrutura de mercado específica. A partir dessa
intuição, logo ficaria claro para o economistas que em mercados
não-concorrenciais os melhores resultados era m obtidos com diferentes
estratégias.
Essa intuição de John Nash refundou e reorientou os estudos
econômicos sobre mercados não-concorrenciais. Talvez seja uma comparação
extravagante, mas poderíamos dizer que teve frutos similares ao trabalho do
escocês. O estabelecimento do princípio do auto-interesse levou ao
desenvolvimento de um corpo teórico e científico sem precedentes nas ciências
econômicas; da mesma forma, a revelação de que, em determinadas circunstâncias,
o princípio do auto-interesse não leva aos melhores resultados possíveis inaugurou
um novo campo de estudos econômicos.
De um ponto de vista humanista, a cinebiografia Uma mente brilhante encanta e arrebata
seus expectadores ao narrar a vida de um gênio matemático que, simultaneamente,
era esquizofrênico. A esquizofrenia não veio só mais tarde, como um fim
melancólico de um engenhoso filósofo. Suas ilusões e delírios já estavam com
ele desde aquela fatídica noite no bar. Com o tempo, tomaram conta de sua vida.
A essa altura, o matemático já reconhecido e renomado teve que enfrentar conscientemente
sua psicose. Como a vida sob medicação parecia intolerável, decidiu enfrentar suas
miragens sozinho, conviver com elas. Já na velhice, quando sua capacidade
intelectual parecia há muito esgotada, assombrou novamente: em uma cena simples
e marcante, o professor John Nash, ao ser abordado por um estranho ao fim de
uma aula, segura uma das suas alunas pelo braço e pergunta-lhe se ela vê aquele
senhor que o abordara. Com a confirmação da moça, convence-se que aquele homem
é real. John Nash aprendeu a conviver com seus devaneios, voltou a lecionar e,
para coroar essa vida e inteligência extraordinárias, foi laureado em 1994.
Gênio e louco, simultaneamente.
Há poucos dias atrás, foi anunciado o vencedor do Prêmio
Nobel de Economia de 2014. Nele, podemos identificar o DNA intelectual de John
Nash. O economista francês Jean Tirole foi laureado pelos seus estudos sobre
regulação da concorrência e poder de mercado de grandes empresas. Adam Smith
teria se ressabiado com a ideia de “regulação da concorrência” uma vez que, para
ele, a concorrência era um resultado da não-regulação, da omissão do Estado.
Mas o modelo do escocês é insuficiente para explicar a concorrência em mercados
nos quais grandes empresas adquirirem poder para manipular preços e
quantidades, em seu benefício. A livre concorrência de Smith pressupõe que
ofertantes e demandantes estejam sob as forças do mercado, e não no seu
comando. Para esses mercados, John Nash é a continuação necessária de Adam
Smith. Para esses mercados, o Estado deve regular a concorrência para impedir
que o poder de mercado de grandes empresas produza resultados piores, obtidos
quando o princípio do auto-interesse é salvaguardado. Num mercado dominado por
grandes empresas, de acordo com o princípio do auto-interesse, tais empresas
controlariam preços e quantidades para seu melhor resultado, gerando uma mais
que proporcional perda para os demandantes. Tudo somado, os resultados obtidos
pelo princípio do auto-interesse são inferiores aos resultados obtidos pela
regulação da concorrência. A loura voltou pra casa sozinha.
https://www.youtube.com/watch?v=BsO5N16uQGc
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