quarta-feira, 17 de setembro de 2014

A Ascensão do Dinheiro: Servidão Humana (episódio 2)

No segundo episódio do documentário The Ascent of Money, Niall Ferguson aborda mais um pilar do sistema financeiro atual, em adição ao mercado de crédito: o mercado de títulos públicos.
Provocativamente, o docente declara o que parece ser uma lei das finanças governamentais: os governos tendem a gastar mais dinheiro do que arrecadam, particularmente em tempos de guerra. Como já vimos, a mera impressão de mais papel-moeda tem um efeito pernicioso: a inflação. Para financiar seus gastos em excesso, surgiram os mercados de títulos públicos na Itália renascentista.

Em primeiro lugar: o que são títulos públicos? São papéis que registram uma dívida de um governo e que podem ser negociados num mercado secundário, o mercado de títulos. Um título possui um valor de face e um cupom, que representa o juro pago anualmente sobre o valor de face ao portador do título. Assim, um título público do governo brasileiro com valor de face de R$ 1.000,00, cupom de 5% e vencimento em dez anos renderá, ao seu portador, dez parcelas anuais de R$ 50,00 e, ao final do vencimento, a restituição dos R$ 1.000,00. Mas isso pode parece pouco atrativo. Quem entregará esse montante ao governo durante dez longos anos? Aqui podemos introduzir o mercado secundário: o portador de um título público pode vendê-lo a outro investidor livremente, de tal forma que o valor dos títulos públicos variem frequentemente ao sabor das forças da oferta e da demanda. Na prática, então, o investidor não recebe um rendimento, como juros, de 5%, conforme o exemplo dado. Seu rendimento depende do valor pago pela aquisição do título. Se aos investidores lhes parece que há risco de moratória, o valor dos títulos públicos caem no mercado secundário de R$ 1.000,00 (seu valor de face) para, digamos, R$ 500,00. Ao adquirir esse título, o investidor recebe, como juros, 5% (o cupom) sobre o valor de face (R$ 1.000,00); como, na prática, desembolsou apenas R$ 500 reais por tal papel, receberá um rendimento anual de 10%. O mesmo vale para flutuações positivas no valor do título no mercado secundário.

Voltemos à obra de Niall Ferguson. As cidades-Estado Florença e Pisa, durante o século XIV, estiveram intermitentemente em guerra, de modo que suas finanças públicas oferecessem desafios consideráveis aos seus gestores. Na prática, esses governos gastavam muito mais que conseguiam arrecadar, na forma de impostos. A máquina impressora ainda não era uma opção: a moeda era cunhada a partir de metais preciosos e não de papel. Num primeiro momento, os dois governos (entre outros governos belicosos da Itália renascentista) tiveram acesso a crédito no nascente sistema bancário, tema do primeiro episódio do documentário. Porém, na medida em que o volume de empréstimos elevou-se às alturas, as linhas de créditos foram sendo saturadas. No seu livro, Ferguson dá cifras assustadoras; a dívida das cidades-Estado multiplicou-se exponencialmente em poucas décadas. Como ter acesso a mais crédito? Florença e Pisa transformaram seus próprios cidadãos (talvez seria melhor caracterizá-los como súditos...) em seus investidores ao imporem empréstimos compulsórios. A grande inovação, aqui, foi o surgimento do mercado secundário, tal como foi descrito no parágrafo anterior.

Desde o século XIV e até os dias atuais, o professor narra momentos marcantes nos quais o mercado de títulos teve atuação significativa, com destaque para as Guerras Napoleônicas e para a Guerra Civil norte-americana. Em ambos os conflitos, os financistas da família Rothschild foram decisivos por comissão e omissão, respectivamente. Durante as Guerras Napoleônicas, Nathan Rothschild valeu-se de sua rede financeira através da Europa para levantar o ouro que foi usado na derrota de Napoleão pelos exércitos ingleses. Já na Guerra Civil, os banqueiros viram o risco de insolvência dos Confederados como impeditivo da concessão de crédito: estavam certos.

Com mais destaque na obra escrita, Ferguson explica, através da narrativa histórica, o maior inimigo dos portadores de títulos públicos: a inflação. De que adianta o rendimento anual se a inflação, ao corroer o poder de compra da moeda, anula esses ganhos? O docente usou um momento dramático para explicar a morte do portador de títulos (nos termos do próprio autor): a hiperinflação alemã do início dos anos 1920. De fato, a dívida pública alemã designada em marcos alemães foi, na prática, anulada pela inflação de quatro dígitos daqueles anos. Imagine a seguinte situação: o investidor Thiago resolve comprar um título do governo brasileiro cujo valor de face é R$ 1.000,00 e cujo cupom é 5% com vencimento em dez anos. O país, porém, tem um surto hiperinflacionário logo após essa aquisição. Ao final do primeiro ano, os preços, em média, sobem 500%; Thiago recebe seu primeiro cupom, no valor de R$ 50 reais (5% do valor de face). No início do ano, Thiago pensou em usar esse rendimento para brindar o fim do ano com uma boa garrafa de vinho,  que custava R$ 50 reais. Custava. Ao final do ano, seu valor, inflacionado, já era de R$ 300 reais. Thiago resolveu gastar seu rendimento em um latinha de cerveja barata.

Ao narrar a hiperinflação alemã e também o processo inflacionário da Argentina nos anos 1980, Ferguson chega a conclusão de que o mercado de títulos apresenta duas vulnerabilidades: o calote direto e o indireto. Há fartos registros históricos do simples calote: a título de exemplo, nossos vizinhos hermanos deixaram de pagar suas dívidas em 1982, 1989, 2002 e 2004. Já o calote indireto acontece quando a inflação é de tal monta que anula os juros dos títulos públicos, quando não o próprio valor de face. Mas não se pode ignorar a força do mercado de títulos: sendo o governo um dos agentes da economia que apresentam os menores riscos de insolvência, os juros de longo prazo em toda economia acabam condicionados pela saúde do mercado de títulos. Um mercado de títulos doente pode estrangular todo um sistema financeiro. 




No próximo capítulo, o aparecimento das bolsas de valores... Até mais!
 Thiago 

Nenhum comentário:

Postar um comentário