segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Mesa Redonda sobre o Plano Real (20/11/14)

A última semana foi diferente para os acadêmicos do curso de Ciências Econômicas da UFSC. Foram três dias de mesas redondas e minicursos organizados pelo CALE (Centro Acadêmico Livre de Economia) dos quais, infelizmente, pouco pude prestigiar. Porém, na última quinta-feira a noite, sob um provocante título que questionava a tese da estabilização da economia brasileira sob o Plano Real, palestraram os professores André Martins Biancarelli (UNICAMP) e José Antônio Martins (UFSC). Confesso que tomei assento no auditório do CSE com suspeição, pois o título da mesa redonda me sugeria uma noite de ataques e desqualificações ao Plano Real desprovidos de argumentos sólidos, típicos de debates partidários. Para meu deleite, o que testemunhei foi um colóquio de pessoas com boas ideias para apresentar.
De fato, nenhum dos professores questionou a proposição da estabilização da economia brasileira pelo Plano Real. Entretanto, contextualizaram-na de modo a relativizar certos mitos políticos, muito convenientes em tempos eleitorais, que retratam o momento como um milagre operado pelas mãos da equipe econômica do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Por um lado, ninguém negou os registros históricos da inflação durante as décadas de 1980 e 1990; por outro, ambos os docentes destacaram o papel do sistema financeiro internacional, condição sine qua non da estabilização. Em adição, cada um deles colocou claras críticas ao modo como a política econômica foi conduzida.
André Biancarelli acentuou o papel do sistema financeiro na domesticação da hiperinflação brasileira. Discorreu sobre os vários planos de estabilização e, principalmente, sobre o diagnóstico econômico que os embasava. Desde a década de 1980, o debate brasileiro sobre inflação gravitou em torno da tese da inflação inercial, segundo a qual os choques inflacionários, no sistema econômico brasileiro, tendiam a se propagar ao longo do tempo indefinidamente através dos mecanismos de indexação que foram disseminados pela economia brasileira desde o início do regime autoritário. Esta tese deu guarida a dois gêneros de planos de estabilização monetária: o dos choques heterodoxos e o da superindexação da economia. Centrados no congelamento geral de preços, o fracasso dos planos heterodoxos já está bem registrado na história econômica brasileira. Mas porque a ideia da superindexação só foi tentada em meados da década de 1990, sob o governo de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, depois de tantos anos de agonia hiperinflacionária? Aqui está o ponto alto do entendimento do professor Biancarelli: não podemos aceitar a ideia, bastante simplória e ingênua, de que os homens do governo tucano são simplesmente mais inteligentes, competentes e preparados que os de Fernando Collor de Mello e José Sarney. Planos econômicos centrados na superindexação já eram conhecidos e debatidos desde os primórdios da luta contra a hiperinflação, juntamente com aqueles centrados no congelamento de preços. Não foram colocados em prática antes simplesmente porque não havia condições econômicas para tanto. O professor Biancarelli argumenta, muito convincentemente, que era necessário, entre outros ajustes, uma âncora cambial para dar sustentação à superindexação da economia. Por um lado, a Unidade Real de Valor (URV) nortearia o estabelecimento dos preços relativos na economia brasileira; por outro, a abertura comercial e a âncora cambial exporiam os produtores brasileiros à concorrência externa cerrada, de modo a debilitar sua capacidade de elevar preços continuamente. Uma consequência evidente de tal plano é o crescimento esperado das importações e consequente piora nas contas externas. Seria necessário acesso ao sistema financeiro internacional para cobrir os saldos negativos em conta corrente. E esse acesso só veio com as negociações e acordos com o FMI que se prologavam criticamente desde a moratória de 1987. 
O docente da UNICAMP deixou claro que não se pode retirar o mérito do Plano Real: a estabilização monetária foi uma grande conquista. Por outro lado, o professor não se submete a mistificações políticas: as ideias que fundamentaram o Plano Real já eram bem conhecidas desde a década de 1980 e o sucesso do plano foi devido igualmente a condições financeiras internacionais favoráveis e ao acesso brasileiro a esses fluxos. Além disso, o palestrante destacou outros aspectos importantes: o Plano Real trouxe estabilização monetária mas não macroeconômica. Um plano cuja base eram os fluxos financeiros internacionais não poderia ser macroeconomicamente estável, especialmente se destacarmos que a maior parte desses fluxos consistia em capitais de curto prazo, aplicações em carteira e não investimentos diretos. A volatilidade desses capitais nos causava vertigem: anos de crescimento em torno de 4 ou 5% davam lugar a anos de recessão e desemprego. Por fim, o abandono da âncora cambial em 1999 (e, consequentemente, a necessidade do financiamento externo) não despertou novamente o dragão da hiperinflação, como muitos imaginavam. Acabou fortalecendo a convicção de outros: a âncora cambial (e a excessiva dependência dos capitais de curto prazo) causou danos demais à economia brasileira e se estendeu por muito mais tempo que o necessário.
A abordagem do professor da casa, José Antônio Martins, foi bastante diferente. Abriu sua exposição com a noção de moeda de Karl Marx. Afirmou que a moeda é apenas uma das formas, a mais universal, assumidas pelo capital. Moeda - lembro-me bem dessas palavras intrigantes - é uma forma de reserva de valor, de preservar e representar valor ou aquilo que é produzido. O que faz uma moeda forte então? O que sustenta uma moeda perante outras? É sua capacidade de guardar valor. Nas palavras do professor, de simplicidade e profundidade incomparáveis: "Moeda é produtividade". A partir desses princípios, como analisar a moeda da economia brasileira e o Plano Real? A análise do professor me pareceu, inicialmente, bastante desalentadora. Discorreu sobre a capacidade produtiva da economia brasileira em comparação com a capacidade da economia norte-americana; sobre a aceitação da moeda norte-americana comparativamente a aceitação da nossa moeda. Questionou, de muitas maneiras, que valor o real guarda, preserva e representa, bem como sua força perante outras moedas do mundo. A essa altura, eu estava intrigado. Se a moeda é essencialmente a forma universal e genérica do valor produzido por uma economia e se a economia brasileira é vulnerável, tímida e débil perante outras, como o Brasil mantém uma moeda com valor relativamente estável? Como o País pode manter, simultaneamente, a economia relativamente exposta aos fluxos internacionais reais e monetários e uma taxa de câmbio relativamente estável e flutuante? Chegamos aqui ao Plano Real. O professor Martins argumentou que o Plano Real só foi possível devido às condições financeiras internacionais que deram suporte à moeda brasileira. O capital, refletiu Martins, exigiu novas formas de valorização a partir do início dos anos 1980. Concretamente, essas novas oportunidades foram criadas no coração do capitalismo durante o governo Ronald Reagan e, a partir daí, exigidas de governos ao redor do mundo. O Consenso de Washington foi sua expressão ideológica. Nesse momento, a economia brasileira, atolada em contradições internas e pelejando em busca de um rumo, apoiou-se no sistema financeiro internacional, adotando sua agenda, para reconstruir sua moeda. Qualquer esperança de construção de um sistema econômico autônomo foi enterrada - irreversivelmente, nas palavras do professor Martins. Temos hoje uma moeda sustentada pelas finanças internacionais, sem vida e vigor próprios, refletindo a força produtiva de nossa economia. Daí o papel fundamental do sistema financeiro internacional durante o Plano Real, como o professor da UNICAMP já havia destacado. Daí a necessidade atual de sustentar custosas reservas internacionais da ordem de US$ 350 a US$ 400 bilhões de dólares. "De quantos bilhões de dólares a Alemanha precisa para sustentar sua moeda?" provocou o professor da UFSC. A estabilização monetária conquistada pelo Plano Real trouxe consigo a irreversível dependência econômica.

Thiago Ferreira

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